Emma Siliprandi , publicado em 19/05/2016 por Carta maior
Camponesas, agricultoras, mulheres indígenas, quilombolas, pescadoras. A sociedade brasileira começa a ouvir esses termos com mais frequência na mídia, mesmo que ainda seja de uma forma estereotipada, como grupos sociais marginalizados, que deveriam ser objeto apenas de políticas sociais (e porque não dizer, assistencialistas).
No entanto, nos últimos anos, essas mulheres vêm mostrando uma capacidade organizativa e política bem importante. Deixaram de ser apenas “esposas de”, e passaram a ter nome próprio. Começam a ser titulares de empreendimentos, presidentes de cooperativas rurais, de associações e grupos de produtoras. Participam de feiras, vendem para o poder público, para os programas sociais e para a merenda escolar.
E também começaram a aparecer politicamente, participando de marchas – como é o caso da Marcha das Margaridas – ou de ações diretas, protestos, fechamento de estradas, manifestações. Elas se organizam em diversos movimentos, apresentado reivindicações ao governo e à sociedade, e se articulam nacional e internacionalmente (o caso mais conhecido é o da Via Campesina). Enfim, se mostram enquanto sujeitos políticos.
No campo da produção ecológica não tem sido diferente.
Embora as mulheres tenham participado das experiências de base ecológica desde o início desses movimentos no Brasil, na década de 1970, elas sempre foram minoritárias na sua coordenação. É sabido que são elas quem primeiro defende a conversão das propriedades para modelos mais sustentáveis, em função das suas preocupações com a saúde e alimentação das pessoas e com a preservação do ambiente. Afinal, elas sofrem as consequências diretas da degradação ambiental – por exemplo, têm que deslocar até mais longe para buscar água ou lenha para cozinhar, e quando alguém fica doente na família é sobre elas que recai o trabalho dos cuidados.
Até o início dos anos 2000, as questões trazidas pelas mulheres não tinham ocupado um lugar importante nas pautas políticas dos movimentos ecológicos no Brasil. No entanto, em várias regiões do país, algumas lideranças femininas teimosamente foram despontando e conseguiram fazer-se reconhecer. Muitas delas, ao entrarem nas lutas sociais, incorporaram discursos e práticas centradas na autonomia das mulheres.
No caso da Articulação Nacional de Agroecologia, a ANA, elas se organizam desde 2004 em um grupo de trabalho específico – o GT Mulheres – que mantém esse debate vivo dentro da rede e visibiliza permanentemente as suas proposições. Elas exigem ter espaços próprios de organização e, nos encontros nacionais, conseguiram que seja garantida a paridade de gênero, ou seja, entre os participantes tem que estar presentes o mesmo numero de homens que mulheres.
Essas mulheres enfrentam muitas dificuldades para serem ouvidas dentro das famílias, nas comunidades, pelo Estado, pelo público urbano. Vivemos em uma sociedade machista e preconceituosa com relação às mulheres e também com relação ao mundo rural. Em geral, se acha que as mulheres agricultoras são ignorantes, desinformadas, e que só servem para trabalhar. Que não são capazes de tomar decisões, de ser empreendedoras, de ter ideias políticas. Que não tem condições de opinar nem sobre a própria vida, o que dirá sobre os rumos da sociedade, as políticas públicas, o futuro do planeta.
Mas elas estão aí nas ruas, fazendo passeatas, discutindo com os governantes, criticando e dando opinião sobre o que está acontecendo. Aparecem com os seus chapéus de palha, suas camisetas lilás, com suas margaridas, suas cestas de alimentos, seus filhos a tiracolo, desmentindo esses preconceitos todos os dias.
Mas quais são, afinal, as questões que mobilizam as mulheres rurais?
São questões de ordem pessoal, familiar, assim como econômicas, políticas e ideológicas. Não são apenas de curto prazo, mas também de projeção de um futuro melhor para todas e todos.
Em primeiro lugar, o direito à terra e aos meios de produção. Para poder ter um lugar para plantar, com condições suficientes (técnicas, financeiras, de comercialização), que garantam o direito de manter suas famílias com dignidade e construir um desenvolvimento rural sustentável com base na agricultura familiar e camponesa.
As mulheres são minoria entre os proprietários de terra no Brasil, mesmo na agricultura familiar, e dentro das propriedades, devido ao monopólio de gerenciamento dos homens, quando conseguem um pedaço de terra para elas, são terras marginais, de baixa qualidade. Os recursos financeiros obtidos pela propriedade normalmente são usados nas culturas consideradas mais importantes (em geral, as que são voltadas para os mercados maiores, de maior visibilidade, gerenciadas pelos homens). Como elas se ocupam normalmente da produção voltada para o autoconsumo e para os mercados locais, contam com piores instrumentos de trabalho, pouca tecnologia, pouco apoio técnico e gerencial.
Aqui faço um parêntesis para comentar que, em muitos lugares, ao contrario do que normalmente se pensa, o que as mulheres produzem “ao redor da casa” – hortaliças, frutas, queijos, doces, pães, ovos, pequenos animais – rendem tanto ou mais do que a chamada “cultura principal”: café, cacau, milho, feijão. Não só monetariamente, pelas vendas em pequena escala e nos mercados locais, mas também pela produção “em espécie”, pois garante a alimentação de qualidade, a mesa farta para a família. Rende, portanto, também “pelo que se deixa de comprar”. No entanto, essas produções continuam a ser menos valorizadas por ser “coisas de mulher”, vinculadas ao seu papel doméstico. O mesmo se poderia dizer, por exemplo, quanto às plantas medicinais recuperadas por elas, que ajudam a que as famílias gastem menos com os “remédios de farmácia”.
Essa visão está mudando paulatinamente, com a maior participação das mulheres nas feiras ecológicas e também com a venda para os programas governamentais (PAA e PNAE) que lhes proporcionam uma renda fixa garantida, favorecendo seu reconhecimento econômico e como agentes produtivas.
Ter dinheiro na mão, fruto do seu trabalho, é uma das condições para que a situação das mulheres rurais melhore significativamente.
Outra condição é serem reconhecidas como produtoras agrícolas, por suas capacidades, experiências e conhecimentos.
As mulheres querem ser as interlocutoras diretas dos técnicos no caso da assistência técnica à produção, querem fomento para melhorar a produção nos quintais, querem ser as titulares dos financiamentos bancários para os seus empreendimentos, definir onde e como gastar os recursos obtidos com a renda familiar, para a qual todos os membros da família contribuem, e não apenas o pai/marido/companheiro. Esse é um enfrentamento direto com a lógica institucional das empresas de assistência técnica e dos bancos, e também um enfrentamento com os maridos e companheiros, que resistem a mudar a sua visão patriarcal. Há muitos relatos de que os gerentes se sentem desconfortáveis ao ter que tratar de negócios com as mulheres, e não com os seus maridos. Muitas vezes, inclusive, exigem que os maridos digam se estão de acordo com as propostas delas (mas o contrario não é verdadeiro, ou seja, não consultam as mulheres quando são os homens que vão ao banco “fazer negocio”).
No âmbito pessoal, as mulheres lutam também por mais autonomia, pelo direito de ir e vir livremente, poder estudar, poder ter mais liberdade, sem medo de sofrer violência intra ou extra familiar. Elas lutam pela desnaturalização da violência que sofrem. Elas apontam, por exemplo, que uma das facetas dessa violência que ocorre todos os dias é a sobrecarga de trabalho com o cuidado da casa e dos filhos. A divisão sexual do trabalho faz com que elas não possam se dedicar plenamente a outras atividades, estudar, ter lazer, até mesmo se organizar. E as consequências são a manutenção da sua dependência, e o aumento das doenças, físicas e também emocionais (como a ansiedade). Por outro lado, se mobilizam também contra o lado mais duro da violência, que são os espancamentos, a violência sexual e os assassinatos.
A Lei Maria da Penha, apesar das suas precariedades, tem sido um instrumento de denuncia e de proteção para as mulheres rurais, seja nos campos, nas águas ou nas florestas.
No campo da agroecologia, a principal luta das mulheres atualmente é pela preservação das sementes crioulas, contra a expansão dos cultivos transgênicos e pela diminuição do uso dos agrotóxicos. As sementes crioulas são uma tecnologia social adaptada pela agricultura camponesa durante séculos, especialmente pelas mulheres, resultado do seu trabalho laborioso de seleção e adaptação ao local, ao clima, às necessidades das pessoas. O seu uso em sistemas agroecológicos garantiria a produção limpa de alimentos. As sementes são o fruto de muita investigação empírica, que vem sendo legado generosamente às gerações futuras concretizando o que poderia ser uma agricultura realmente sustentável. O que as grandes corporações fazem é apropriar-se desse conhecimento, transformá-lo em uma mercadoria que, orientada pela maximização dos lucros, amarra os agricultores em uma cadeia sem fim de dependência tecnológica e econômica, além de provocar uma serie de riscos para a saúde das pessoas e do ambiente.
As mulheres rurais de varias partes do mundo estão se rebelando contra essa situação, enfrentando o poder dessas grandes corporações, e mostrando que é possível dizer não. O pacote que vem com as sementes transgênicas é o símbolo de uma agricultura que expulsa e mata pessoas e animais, contamina, destrói o agroecossistema, em nome da ganância de uns poucos.
É certo que participar de experiências agroecológicas amplia as possibilidades de melhoria da vida das mulheres, pois permite trabalhar a partir de um novo paradigma de harmonia da humanidade com a natureza e entre os seres humanos, que preza pelo respeito mútuo, pela consideração pelo(a) outro(a), pela horizontalidade. O campo agroecológico favorece a participação de todos os indivíduos, busca o autoconhecimento e comprometimento com a coletividade. As mulheres rurais estão aproveitando esses espaços para crescer como indivíduos e como grupo, e têm contribuído com suas inquietações, seu conhecimento e sua experiência para o enriquecimento da visão de futuro desses movimentos, centrada na sustentabilidade e na equidade de gênero, consignas claramente ecofeministas.
*Emma Siliprandi – Engenheira Agrônoma, Mestre em Sociologia, Doutora em Desenvolvimento Sustentável. Assessora o Grupo de Trabalho Mulheres da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia). Coordena Projeto de Apoio a Políticas de Segurança Alimentar da FAO na America Latina e Caribe.
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